Acalanto
(Mario Gil / Zeca Ferreira)

Deita
O sono já chega
E o corpo cansado
Quer se aconchegar

Dorme
A noite é tão pouca
E o dia já volta
Pra te despertar

Lia, cozinheira e babá
Rita faz amor pra viver
Clara que trabalha por dois
Nina que nem sabe o que fazer

Se amanhece o sonho se vai
Mais um dia pra se viver
Vidas que o destino constrói
Ilusões que o tempo vai varrer

Nina sonha já ser mulher
Rita quer um vestido de outra cor
Clara sonha um tempo de paz
Lia quer sonhar com seu amor

Dorme
Que amanhã é tempo
De recomeçar

 

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Anabela
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

No porto de Vila Velha
Vi  Anabela chegar
Olho de chama de vela
Cabelo de velejar
Pele de fruta cabocla
Com a boca de cambucá
Seio de agulha de bússola
Na trilha do meu olhar

Fui ancorando nela
Naquela ponta de mar

No pano do meu veleiro
Veio Anabela deitar
Vento eriçava o meu pêlo
Queimava em mim seu olhar
Seu corpo de tempestade
Rodou meu corpo no ar
Com mãos de rodamoinho
Fez o meu barco afundar

Eu que pensei que fazia
Daquele ventre o meu cais
Só percebi meu naufrágio
Quando era tarde demais
Vi Anabela partindo
Pra não voltar nunca mais

 

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Caçador
(Mario Gil / Luizinho Lopes)

Caçador
Onde brilha um olhar surge... caçador
Meu amor
Meu amor teu olhar caça... caçador

Caçador é ligeiro
Passageiro do ar
Caça o verde dos olhos
Caça o brilho no olhar

Meu amor é ligeiro
Deixa o vento levar
Iça as velas do peito
Sem saber ancorar

 

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Cargueiro
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Lua amarela, veleiro, flutua no ar
Pano de vela de estrelas, lanternas do mar
Lança do bico da proa um cordão de luar
E amarra a minha canoa que eu quero embarcar

Casco de veleiro
Vento vai riscar
O meu nome inteiro
Sou mais marinheiro
Do céu que do mar

Barco de São Jorge
Quero navegar
E que Ogum me forje
Com a prata do alforje
O meu patuá

Lua que traz na maré que Deus dá
Os versos do meu cantar
Lua que leva a dor do meu olhar
Cargueiro do meu penar

 

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Caruana
(Mario Gil / Paulo C. Pinheiro)

Sob o rio-mar, no fundo do macaréu
Tem um mundo de outro chão e outro céu
Vive um povo louro ali sob o igarapé
São de ouro as ocas de sapé

Tem a pele alva como um véu
Comem um maná melhor que mel
E só vêm à tona da maré
Ao ouvir o canto do pajé

Nas águas do rio à noite tem lumaréu
Vem do fundo claridão, fogaréu
E tem moço louro e moça no aguapé
É namoro, diz o caburé

Tem um som de reza, ao longe, ao léu
Que faz se benzer até o incréu
É maraca, é marimba, é
É o som da chamada do toré.

Eh! rio-mar, Eh! rio-mar
Povo de Caruana é que mora lá
De Aruaque, de Jê, de Juparaná
De Aruã, de Araúna, de Aruaná

É o guardião do rio-mar

Caruana anda naquele mundaréu
Da nascente até a foz, déu em déu
Monta o tambaqui, galopa o tucunaré
O curimatã e o jacarécoité

Diz, quem é dali, o povo ilhéu
Que de noite se ouve o seu tropel
Vem ao som do canto do pajé
Vem beber cauim no seu coité

 

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Comunhão
(Mario Gil)

Zeca Boiadeiro de Caicó
Filho de João Brabo e de mãe Filó
Corta ribanceira do cafundó
Vida de vaqueiro, escravo de Jó

Rosa Bordadeira de Guaporé
Filha de Olinda e de Josué
Corta e borda o manto de São Tomé
Vida costureira trançada na fé

Festa na Capela do Arpoador
Coco, arroz-doce e quentão
Zeca Boiadeiro de roupa de doutor
E Rosa de anel na mão
Dança na fogueira
Roda de calor
Zeca e Rosa em comunhão

Casco de cavalo batendo o pó
Couro de arreio amarrado a nó
Rasgo de punhal sob o paletó
Zeca Boiadeiro cansado e só

Linha, agulha, pano, retrós, dedal
Tanque, quarador, pregador, varal
Faca, escumadeira, feijão e sal
Rosa Bordadeira de vida igual

Joca cerca o gado no pantanal
Nina é moça e já tem dedal
Diolinda, Chico
Juca e Sebastião
Zinho que é temporão
Juca vai à escola
Zinho vai crescer
E outro que ainda vai nascer

 

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Cristalina
(Mario Gil)

Essa mina
De esmeraldas e rubis
Que alguém plantou num solo
Ávido de cor

Deu à vida o sonho de um cantor
Deu ao sonho o brilho de viver
Deu ao canto a vida sem saber
Deu à luz o filho do prazer

Era água, era fonte, era cristalina
Seja água, seja fonte, seja cristalina

Seja a vida o sonho do cantor
Seja o sonho a fonte do viver
Ser fluente a vida sem saber
Ver crescer o filho do prazer

 

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Dançapé
(Mario Gil / Rodolfo Stroeter)

Bumba tamborzeiro,  eá
Tantã, atabaque, eá
Ê rum dá reô
Ê rum dá reô

Dança cunhãzinha, iaiá
Curuminho canta, ioiô
Ê rum dá reô
Ê rum dá reô

Aruá, aiê, batucajé

Dança dançadeira, eá
Arirê, candeia, eá
Ê rum dá reô
Ê rum dá reô

Enibaraô, camará
Ogunhê, cungu, camará
Ê rum dá reô
Ê rum dá reô

Ijexá, jarê, Cabecilê

Mana Chica vai dançar
Sinhazinha vem sambar
Jongo, jeguedê, baião de dois

Coco, passa-pé, rojão
Dança pra chover, trovão
Na pancada do ganzá, eô

Cirandeiro vem cirandar
Batuqueiro vem batucar
Ê rum dá reô
Ê rum dá reô

Roda bendengueiro, eá
Bate pé, tutu marambá
Ê rum dá reô
Ê rum dá reô

Alabê, ajô, batuquejê

O pandeiro já tocou
Zabumbeiro zabumbou
Ferro já berrou, é agogô

Bailador tem que bailar
Brasileiro vai dançar
Na pancada do ganzá, eô

 

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De Flor em Flor
(Mario Gil)

Quem de fora
Olha a gente
Nunca entende
O nosso amor
Desde agora
Desde sempre
Diferente
O nosso amor

Vale a solidão
Vale a nossa dor
Vale a sensação
De ser de fora
Ser ausente
Inocente
Por querer
Ser agora
Ser presente
Consciente
Sem saber

Vai embora
Segue em frente
Deixa o dissabor
Se essa hora
Mata a gente
Cresce um sonhador

Segue o rio que deságua a dor
Segue a vida sem parar
Corre o mundo que te espera, amor
Todo o tempo afora
Vai contente
Vai de flor em flor

Segue o rio que deságua a dor
Segue a vida sem parar
Leva todo o meu carinho, amor
Nosso tempo e agora
Segue em frente
Vai de flor em flor

 

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Despedida
(Mario Gil)

música instrumental


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Elogio
(Mario Gil)

 Isso é tudo assim mesmo
O sorriso aberto do João
O olhar bonito
Os lábios dos mais de mil tons

 Mágicos os dedos de um brasileiro
Tem um gringo cego
Um vereador que é violeiro
E um baiano que não é negão

 Isso é tudo sem jeito
Com esse jeito lindo de fazer canção
Tudo estranho e perfeito
Quando o belo é apenas dizer não

 Trago um lobo no peito
Um Caymmi de antemão
Um computador com defeito
Que não dá idéia na canção

Dorme menina, tem medo não
Estes fantasmas só procuram mais uma canção

Dorme menina, nem liga não
Eles bem feito, passam a noite toda num clarão

 

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Essa Moça
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Ah! Como é bonita
Essa moça que me fita
É pra mim visão bendita
Quem lhe fez teve a visita
De Orfeu, de Deus, de artista
De artesão

Ah! Essa senhora
A mulher que me namora
Como é bela à luz da aurora
Mãe de Deus! Chega, apavora
Que parece em certas horas
Sombração

Agradeço tanto
Ter em mim esse dom santo
De fazer teu corpo um manto
Me vestindo desse encanto
De paixão, de amor, de espanto
De ilusão

Vou nesse momento
Pela luz do firmamento
Te fazer um juramento
Te entregar meu sentimento
Até quando eu tenha dentro
Coração

 

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Flor Ardente
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Foi minha procura
Pela noite escura
Que selou a jura de depois
E a minha espera
Trouxe a primavera aos dois

Uma flor como nenhuma
Dissolveu a bruma
Num clarão de espuma
E um sândalo perfuma
O corpo que se inflama
O peito de quem ama
E essa flor em chama
Despetala luz na minha cama

Foi tua chegada
Flor iluminada
Que floriu a estrada de depois
E a claridade
Trouxe a eternidade aos dois

Foi procura e confiança
Espera e esperança
Estrela, fé, vontade
Foi assim, que assim somente
Brota a flor ardente
Da felicidade

 

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Iara
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Iara das águas, ouvi tua voz
Cantando nos igapós.

Teu canto é doce, mais doce do que...
Do que o licor do bangüê.

Teu olho brilha, na lenda que ouvi,
Mais que olho de sucuri.

Caboclo conta que quem já te olhou
Morreu ou se encandeou...

Iara, teu canto me dá calundu
Mais do que o uirapuru.

Vem, mãe-dos-rios, me deixa te olhar
Vem, meu Tutu-Marambá...

Crave em mim o teu olhar de muiraquitã
Vem, me deixa seu teu curimã...

Se é mais belo que o das moças de Santarém
Que olho que Iara tem!
Me olha, Iara, vem!

 

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Imperador da Ralé
(Mario Gil / Zeca Ferreira)

Imperador da ralé
Compadre Chico Bacharel
Cordão, pulseira e boné
Sorriso manso, olhar cruel

Devoto do candomblé
Compadre, santo coração
É homem de muita fé
Só mata quando tem razão

Vai, pisa leve, mané
Que aqui no morro ele é doutor
Reza mandinga de fé
É macumbeiro professor

Só tem paixão por mulher
Se é moça pura ou moça flor
Se é parideira não quer
Se é complicada tem horror
Respeita freira e pajé
Mas tem pavor de cobrador

Arruma as coisas, mané
E pula fora desse andor
Se Chico pega no pé
Não tem paixão, não tem amor
Não sobra nada de pé
Não sobra nada do senhor

É homem de decisão
Estrategista de má-fé
Armado por precaução
Não gasta chumbo em pangaré

Compadre é calmo que só
Escuta muito, fala não
Tem paciência de Jó
Só não perdoa traição

Toma cuidado, mané
Que Chico pode se zangar
Escuta a voz da ralé
Respeita o dono do lugar

Chegado no arrasta-pé
Compadre Chico é bom demais
Requebra e quebra a mulher
No dois pra frente e dois pra trás
Se é moça certa ele quer
Se fala muito não quer mais

Arruma as coisas, mané
E pula fora desse andor
Se Chico pega no pé
Não tem paixão, não tem amor
Não sobra nada de pé
Não sobra nada do senhor

 

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Kindergarten
(Mario Gil)

música instrumental

 

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(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Lá onde eu nasci
Beira-de-mar
Brejal de flor
Cheiro de sal
Colônia de pescador

Lá passava um trem
Cortando o chão
Dos capinzais
Pros Armazéns
Da Estação
Do Velho Cais
Onde eu cresci
Vendo as marés
Marujos mil
Com seus bonés
E um dia eu fui
Com roupa azul
Pra um convés

Fui nesse mundão
Vi tanto mar
De toda cor
Ouvi demais
Cantigas de pescador
Vi vagões de trem
Noutros sertões
Vidas iguais
E comecei a recordar
Meu velho cais
Onde eu cresci
Rei das marés
Quero largar
Chão de convés
Voltar e não tirar jamais
De lá meus pés

 

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Lenda Praieira
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Nasceu num barco pesqueiro
Pescava desde menino
Mestre das águas proeiro
Do litoral nordestino
Em roda de jangadeiro
Deixou seu nome Quirino
Quem vive em chão de saveiro
É o chão do mar seu destino

Foi isso que deu-se um dia
Cação virou seu veleiro
Foi luta de valentia
Do peixe contra o barqueiro
Sangue, suor, maresia
O ar ficou com esse cheiro
Subia água e batia
Tudo sumiu no aguaceiro

Houve arrastão na baía
Do quebra-mar à costeira
Do fundo nada surgia
Só da jangada a madeira
As moças em romaria
Puxavam reza praieira
No fim do sétimo dia
Fez-se a oração derradeira

A sua história foi bela
Virou cordel seu destino
Tem nome em pano de vela
Verso em Chegança e Divino
Mas uma moça donzela
Teve depois um menino
A cara do filho dela
Era de novo Quirino

 

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Luz do Cais
(Mario Gil)

Quem deseja ser do céu
Não vacila frente ao mar
Pula o cerco
Visa o cais
Corre em busca do mais
Não se cansa
Não retrai
Não no instante em que cai

Quem precisa ter nas mãos
O direito de escolher
Sente o vento
Livra o olhar
Deixa o amor derivar
Não balança
Não se trai
Segue a trilha que vai
Bem no instante em que cai

 

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Magia
(Mario Gil)

Um e dois e três
E a cortina abria passo a passo
Ah! queria ver tudo de uma vez
Até covardia tanta luz
É! e a hora chegava um dia
Quem diria! Assim de supetão
Mal sabia se era inverno
Ou noite de verão

Quantos, nossa! quantas
Quanta euforia, só pensar
Nem lembrava que
Sim! Passava noite e dia após dia
Sem saber se era sonho ou estripulia
Quem diria! Num relampejar
Bruxaria, maluquice, coisa de oxalá

Um e dois e três
E a luz se esvaía passo a passo
Ah! Queria ver tudo outra vez
E o pano caia lentamente
Ah! queria ver tudo outra vez
Até covardia, puxa vida!
Eu queria ver tudo outra vez
Eu volto outro dia, te prometo

 

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Mestre Capiba
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Falar de frevo eu me atrevo
Mas com permissão
Mestre Capiba, o que eu devo
É beijar sua mão
Se for falar de frevo
Seu nome eu escrevo
Em alto relevo
No meu coração

Frevo é no Recife porque
Olha lá você
Só quem é maluco não vê
Que Pernambuco se exibe
Com o som do Capibaribe
E o som do Capibaribe
Capiba é você

 

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Minha Terra, Meu Lugar
(Mario Gil)

Cada dia que passei
Tanta noite sem dormir
Muito tombo que levei
Tanto sonho que esqueci, irmão
Volto pra lá

Tanta fome que enfrentei
Nessa conta me perdi
Muita raiva que passei
Tanto azar que desisti, irmão
Volto pra lá
Vou pro meu sertão

Lá, dormia em tarde de sol
Sonhava ser coronel, capitão
Lá, comia carne-de-sal
Corria o mato de faca na mão

Lá, pisei descalço no chão
Fiz repente em meu violão
Fiz fogueira em noite de São João

Se a cidade me engoliu
Só me fez ingratidão
Vou deixando esse lugar
Pra voltar pro meu luar, no sertão
Volto pra lá

Se eu cheguei pra progredir
Dediquei meu coração
Tanto prédio construí
Tanto amor que foi em vão, irmão
Volto pra lá
Vou pro meu sertão

Lá, estrela brota no céu
Que cada trilha se vê, meu irmão
Cada um de enxada e chapéu
Traçando a vida com a palma da mão

Lá, pisei descalço no chão
Fiz repente em meu violão
Fiz fogueira em noite de São João

Quero a minha terra
Quero o meu lugar

 

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Nove Luas
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Eu parti na lua cheia
Pra correr o mar
Só parei aqui para mercar

Mas vi o mar no olhar de uma mulher
Puxando como a força da maré
Morena Mariana, eu sou marinheiro
Fiquei pra te navegar

Cada morena que faz
Meu navio ancorar
Merece ser o meu cais
Derradeiro de amar

Mas eu tenho que embarcar
Eu quero o mar alto, o mirante
A miragem, o mar

Eu cheguei na lua nova
Pronto pra zarpar
Se passaram nove luas já

A maresia chama igual mulher
Pra me levar  pra cama da maré
Morena Mariana, eu sou marinheiro
Eu sempre morei no mar

Cada morena que faz
Maré-cheia no olhar
Faz o meu olho marujo
Também marejar

Mas eu tenho que embarcar
Eu quero o mar alto, o mirante
A miragem, o mar

 

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Olho-de-fogo
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Quando eu era menino de ribeirinho mãe me ensinou
Foge de olho-de-fogo, seja o que for
Pode ser fogo-fátuo, cobra-norato, maracajá
Tincoã, caburé, saci, boitatá

Mas eu não tive medo
O dia que vi, o que mãe falou
Quando o olho-de-fogo
De uma morena me encandeou

Era igual rubi reluzente
Sol que vai raiar
Fogo-de-santelmo, olhar de serpente
Estrela-do-mar

Era brilho de aço de gume
Aro de luar
Candelabro, ninho de vaga-lume
Vela de altar
Desde então tô preso nesse olhar

Olho de labareda, tocha de luz que muda de cor
Facho ardente de fogaréu-corredor
Olho de candeeiro aceso em pavio crepuscular
Claridade de lamparina no mar

Era de assombração
O olho-de-fogo que mãe falou
Mas aquele que eu vi
Foi fogo de gente, um olho de amor

Era archote incandescente
Brasas pelo ar
Claridão que tem olhar de vidente
Em seu alguidar

Era uma fogueira cadente
Chama de um quasar
Quase a luz que liga o mundo da gente
Ao lado de lá
Desde então tô preso nesse olhar

 

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Outro Quilombo
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Ponta de pedra, costeira, perau, quebra mar
Mangue, colônia pesqueira, Pontal do Pilar
Barro, sapé e aroeira, é a casa de lá
Bule de flandres, esteira, moringa e alguidar
Beira de mar

Praia de areia de ouro de alumiar
Luz de vagalume, estrela, candeia e luar
A lua cheia se mira nas águas de lá
Lá que a sereia costuma surgir pra cantar
Beira de mar

Cada negro olhar
Sangue de África
Centro de aldeia, bandeira, nação Zanzibar
Da mesma veia guerreira do povo Palmar

Tudo palmeira de beira de mar
Tudo palmeira de beira de mar
Tudo palmeira de beira de mar

 

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Pajé
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Foi num ritual de fé
Que um caboclo me levou
Na cabana de um pajé
Feiticeiro da Nação Kraô

Na beira da fogueira pajé sentou
Bebeu mel de Jurema, desencarnou
Deixou seu corpo preso no mundaréu
Foi visitar seu povo, no céu do céu

Seu olho faiscava quando voltou
Na mão trazia o toque de curador
Pegava brasa viva no fogaréu
E ao pôr numa ferida
Purgava mel

Ele andava com um bastão
De raiz de pau
Que virava em sua mão
A cobra-coral

Ele amançava onça com seu licor
Ele beijava bico de beija-flor
Tocava o seu chocalho de cascavel
E o rio recuava seu macaréu

Ele entortava o rumo de caçador
E achava curuminho que não voltou
Quando pescava peixe, não tinha arpéu
Peixe pulava dentro do seu batel

Diz-que em noite de luar
Jura o povo ali
Que já viu ele virar
Uma sucuri

 

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Piraia-guará
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Lá na Amazônia se a noite se enluarou
O Boto vira um rapaz sedutor, ê ô
Bota uma roupa alinhada, põe seu chapéu
E sai atrás de uma lua-de-mel.

Dá medo em pai que tem moça na flor
Marido então, nesse aí dá pavor, ê ô
Os moços falam pro seu bem-querer
Não sai que o Boto enfeitiça você...

Saranha, icanga, peixe-andirá
Ele é o Piraia-guará .
Menina, moça, não ande ali
Tem Tucuxi...

Senhora, esposa, dona, mulher
Não vá que tem Boto em pé
É lua-cheia, o bicho ta aí
Não vá que eu vi...

É tanta estória que o povo de lá contou
Tem cada caso que é assustador, ê ô
Diz que é encanto de Boto a mulher que trai
Diz mãe-solteira que Boto é o pai

Até o macho que o Boto encarou
Pega por home quebranto de amor, ê ô
Por isso em beira-de-rio ao luar
Meu bem-querer eu te peço não vá...

Saranha, icanga, peixe-andirá
Ele é o Piraia-guará .
Menina, moça, não ande ali
Tem Tucuxi...

Senhora, esposa, dona, mulher
Não vá que tem Boto em pé
É lua-cheia, o bicho ta aí
Não vá que eu vi...

 

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Rainha do Mar
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

João foi quem contou
Quando afundou no mar
Diz-que ele endoideceu
Com o que ele viu por lá
Um reino sob o mar
Palácio de coral
De conchas era o chão
O trono era de sal

No inclinado convés
De um antigo galeão
Viu sereias em coro
Entoando uma canção
Tinham peixes de luz
Imitando castiçais
E cardumes de cor
Se mexiam nos vitrais

Quando um cortejo ali chegou
De cavalo-marinho a puxar
Da carruagem-mãe surgiu
O vulto da rainha do mar

João se extasiou
Não quis acreditar
O olho esbugalhou
Na luz daquele olhar
A moça então ergueu
O pescador do chão
O sal do mar brotou
Dos olhos de João

Ele aí se curvou
E beijou a sua mão
A mãe d'água o afagou
Junto do seu coração
O cortejo formou
Pra rainha então passar
Ela e seu pescador
Rumo ao claro do luar

João só lembra que acordou
Sentindo o corpo se arrepiar
De longe o vulto lhe acenou
Sumindo dentro d'água do mar

 

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Rendas de Prata
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Deu meia-noite e meia
Tem lua cheia pra alumiar
Do céu a estrela branca
Que cai, destranca
O portão do mar

Deixa a camisa fina
Da lamparina
Se encandiar
Que a luz do candeeiro
Faz o coqueiro
Se enfeitiçar

A onda é de ensurdecer
A brisa é de amenizar
Tem qualquer coisa de arrepiar

A lua é de endoidecer
O azul é de admirar
O céu é o espelho de Iemanjá

Em noite assim
As sereias costumam bordar
Rendas de prata
De estrelas caídas no mar
No manto de Janaína

 

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Samba de Roda na Beira do Mar
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Ora-iê-iê-ô
Ogunhê
Okê-arô
Eh! Alodê
Kabiecilê
Arrobobô

De dia não tem maré-cheia
Na praia tem barco na areia
A roda do sol vai girar
De noite é que a espuma prateia
Que o aro da lua encandeia
Que a lua também quer rodar

Gira a folha da samambaia
Trançada por cima da saia
Que a moça botou pra dançar
Raia o dia e a noite raia
Tem palma na beira da praia
Do povo que vem rodear

Festa de rua na areia do chão
Roda de verso que vem pelo ar
Toque de samba na palma da mão
Samba de roda na beira do mar
Janaína, Inaê, Odoyá

 

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Século XX
(Mario Gil)

Canto do mar
Brilha no ar
Faz um som nascer
Puro sinto o alçar
Preso pelo vento
É bom cantar pelo cantar
Sonhos pelo ar
Monges livres da fé

Som viajará
Por um pomar
Tímpanos de pétalas
Aves no céu
Deixam o odor da flor no ar
E os céus dirão
Som milenar
Cordas a vibrar
Bomba pulmonar
Solta a voz do cantor

 

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Senha
(Mario Gil /Luizinho Lopes)

É tão visível não vê quem não quer
Admissível deitado ou de pé
Diga a tal senha do sonho
Pra ser feliz e depois peça
Pra darem a luz ao meu país

Todas estrelas são filhas de luz
Mata vampiro a cruzeiro do sul
Cante a tal senha do sonho
Pra ser feliz e  depois
Meça o efeito da luz no meu país

Tenho fome de maçã
Muito frio de tão só (lã)
Agasalho não há mais
Quero só ver a maçã

Sonho-te Sésamo a senha de um
Sonho-te Sésamo a senha de um
Sonho-te Sésamo a senha de um
Sonho-te Sésamo a senha de

Olha a babá de um ladrão quarentão
Ninando  ouro  milhão por milhão
Quem dera a senha do sonho
Soubesse agora ora
Deixava o lodo de fora do meu país

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Submerso
(Mario Gil / Paulo César Pinheiro)

Casa assobradada
Na rua da praia
Pé de samambaia
No portão de entrada

Tinha uma menina
Que em noite de lua
Se banhava nua
N'água cristalina

Ela pulava das pedras
Secava no vento
Deitava ao luar
Sabia que eu vinha olhar

Um dia ouvi seu chamado
Quando ela saía
Das ondas do mar
Fez-me na areia deitar
Fui me deixando levar

Mas a maré do seu ventre
Eu senti me puxar
Nadava contra a corrente
Pra não me afogar
Mas vi meu corpo afundar

Hoje submerso encantado
Não quero voltar
Não quero ser resgatado
Do fundo do mar

 

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Temporão
( Mario Gil / Wagner Brandão)

Ter em mente o sol
E penetrar na escuridão
Progredir na sombra
E refletir-se num clarão

Dominar o mar
E derivar nessa paixão de ancorar num olhar
Ter o fogo em si
E explodir pelo ar

Ver a luz nascer
Tingindo o pano da visão
Ser nascente
No deserto, lente da ilusão

Transcender a fé
E perceber a luz nos olhos de um povo pagão
Ser maduro
O fruto de um ser temporão

 

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Vaga-lume
(Renato Braz / Mario Gil)

Se esse moço entendesse a minha sina
Tanto choro deixava de chorar
Se eu seguisse a paixão que sinto agora
Eu deixava esse moço me levar

Se eu pudesse, eu me atava a esse amor
Mas com medo não posso me arriscar
Vivo como um vaga-lume
Me acendo em cada olhar

Cada rosto que vejo da janela
Cada sonho que passo a sonhar
Se eu soubesse eu negava a minha sina
E deixava esse moço me levar

Se eu pudesse, eu jurava o meu amor
Mas em mim Deus não vai acreditar
Nem os santos me escutam
Nem ao menos sei rezar

 

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Visão Nordestina
(Mario Gil)

música instrumental

 

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